1 de fevereiro de 2017

LA LA LAND – SE ELA DANÇA EU CANTO


LA LA LAND, o musical escrito e dirigido por Damien Chazelle, apresenta uma situação curiosa. Você pode gostar (logo é alguém que abraça a diversão, sem compromissos) ou se decepcionar (ou detestar. Logo é um chato, um esnobe ou alguém sem coração. Um antipático). Alguém pode argumentar que isso é uma condição normal em qualquer apreciação da arte. Qual a diferença aqui?

Tempo.
Mais.
A passagem do tempo.

Está sendo um exercício de cinéfilos reconhecer a abertura do filme como uma referência ao “Arrivée Des Camionners”, que abre o encantador DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS (“Les Demoiselles De Rochefort”), de 1967. Uma homenagem ao colorido musical de Jacques Demy. Mais de cem figurantes, presos num típico engarrafamento de Los Angeles, explodem num número de dança na Rampa E-Z que leva à freeway 110. Alguns espectadores tem comparado o momento a um “flashmob”, o que dá, portanto, o direito da invenção da brincadeira grupal ao revolucionário Busby Berkeley, que ensinou como se filma um musical. A cena é composta de um virtuoso plano sequência com três imperceptíveis cortes. Um tour-de-force cinematográfico. O filme quer mostrar que pode (também no caso, literalmente) flexionar os músculos.

Eis que surge o antipático para lembrar alguns pontos. O filme de Demy também se propunha ser uma homenagem aos clássicos musicais americanos das décadas de trinta, quarenta e cinquenta. Período, não só do seu apogeu estético como das suas bilheterias fartas de sucesso. O musical fornecia arte de primeira ao espectador e lucros formidáveis aos estúdios. Todos satisfeitos.

O gênero já estava decadente quando Demy decidiu prestar seu tributo. Para isso o diretor se cercou do melhor possível. Juntou sua musa de musicais, Catherine Deneuve, com a igualmente bela (e, pelo triste destino, trágica) irmã, Françoise Dorléac. Chamou o “oscarizado” George Chakiris, o explosivo Bernardo de AMOR, SUBLIME AMOR (“The West Side Story”), de 1961. Cabe comentar, aqui, que a obra-prima filmada por Robert Wise representou o momento culminante de toda a evolução dos musicais. Um divisor de águas. Todos os excelentes filmes cantados (e não foram tantos) que se seguiram, CABARET, A NOVIÇA REBELDE (sintomaticamente, ganhadores do Oscar de melhor filme) e HAIR estavam livres para explorar seus formatos cinematográficos. Libertos dos palcos da Broadway, de onde alguns vieram.

Como os musicais de outrora contavam, também, com os melhores compositores da primeira metade do século XX (Gershwin, Irving Berlin, Cole Porter etc), era necessário que o diretor francês encontrasse um equivalente qualitativo. Tarefa difícil. Eis que surge o parceiro Michel Legrand.  Resultado: não existia uma única música medíocre na trilha. Todas eram plenas do talento de “Le grand Legrand”. Num contraponto, as  coreografias eram embaraçosas na simplicidade. Nenhum Michael Kidd ou Roland Petit seria emulado. Mas, como uma afirmação final de carinho, a presença de Gene Kelly. Uma bela fita decorando a cesta do tributo.

Voltando para 2017, o antipático olha para a tela e começa a entristecer. Comparada à do  filme francês, a música de abertura (“Another Day of Sun”) é de uma mediocridade atroz. Toda uma esfuziante e trabalhosa sequência é acompanhada... por uma uma música insignificante...

E eis um ponto crucial, em que o antipático acerta: não se pode aplicar indulgência à LA LA LAND. A promessa do filme é “prestar tributo” ao mesmo tempo que “atualizar a visão” do gênero. Estamos falando de um filme aplaudido em festivais pelo mundo. Que faturou sete Globos de Ouro (um recorde). Possui um enorme número de indicações ao Oscar e, certamente, vai levar o principal da noite. Não adianta. É preciso comparar.

Encantado pelo lindo cartaz do filme (espalhado pela cidade), o antipático talvez não devesse ter esperado tanto. As expectativas eram altas.

Justin Hurwitz, Benj Pasek e Justin Paul fazem um score apenas… convencional. Nosso descompromissado surge em defesa do filme e aponta que nenhuma música é essencialmente ruim. O que é verdade. Mas o antipático está falando de um filme “musical”. As canções são o eixo central do gênero. Tudo gira em torno disso. Não se pode ser condescendente com um musical com músicas “razoáveis” ou “agradáveis”. O descompromissado defende “City of Stars”. O antipático cede. É realmente bonita. Só não salva o conjunto da obra. Pena.

Mas se tudo é apenas razoável (o antipático é implacável), qual a razão de todo esse afeto do mundo pelo filme? Boa pergunta. A resposta pode vir em partes. A primeira seria que Hollywood se adora (e seus satélites pelo planeta sentem o tremor desse amor egocêntrico). Quando O ARTISTA surgiu, em 2011, seu efeito foi semelhante. “Eis um formato (esse, o original) clássico do cinema”, apontaram. Um belo filme, sem dúvida. Levou um Oscar de presente. Algumas pessoas até se recordam dele hoje em dia. Outras não. Hollywood aprecia obras que lembrem para ela (e para o mundo) que já foi relevante, “artística” etc. Que ainda pode servir de púlpito, referência, digna de reverências etc.

Que a indústria cinematográfica de hoje seja sustentada por super-heróis, espaçonaves e filmes barulhentos (ou, insulto máximo, pela migração para a TV)... Infâmia... Difícil de aturar...

Num determinado momento, Sebastian, o pianista interpretado por Ryan Gosling toca uma sequência no piano. Repete o que teima em escutar na vitrola. Tem que soar igual. Sebastian é músico de “lounges”. Mas quer ser mais. Escuta-se Monk. Fotos de Bill Evans e John Coltrane percorrem o imaginário. Sebastian quer ser algo que se foi. O mundo não aceita seu passadismo. O jazz que ele busca virou uma paródia. Seu erro é achar que o jazz está morrendo, quando o que ele chama de “jazz” é apenas uma das suas escolas: o “Hard Bop”. Estilo que, graças ao academicismo dos “Young Lions” liderados por Wynton Marsalis, se tornou o que o ouvinte normal convencionou, hoje em dia, chamar de jazz. Sebastian explica que tudo é uma linguagem desenvolvida por quem não podia se comunicar em guetos. Que Sidney Bechet ameaçava matar por uma nota tocada (o que certamente foi o motivo dele ter se tornado o maior sax soprano da história. Fica implícito? Tomara que não!). Mia, a jovem atriz dotada da beleza de Emma Stone, interrompe a aula e pergunta: “E Kenny G?”. Sebastian desconversa. Mas Kenny G, ame ou não, É jazz. “Quem diz que detesta o jazz, não conhece o jazz!” Não necessariamente, Sebastian. É possível se conhecer jazz e não se gostar. O jazz é uma nascente que alimenta diversos estilos. Não é obrigação se gostar de todos. Mas Sebastian  busca um “jazz de raiz”. O fato de, contra a sua vontade, ele servir de músico para o amigo cantor bem sucedido, fere seu orgulho e sua certeza absoluta de uma qualidade que precisa ser salva e preservada. O amigo declara que “é preciso levar o jazz para os jovens!”; ou “Os músicos que você ama eram revolucionários!” (leia-se: você não é!). “Você não pode viver no passado!” Tantas certezas para, mais adiante, ele mostrar que é mesmo um farsante. Um malandro que se “auto sofistica” chamando de jazz o que está cantando. E o que canta pode ser chamado de qualquer coisa. Menos jazz. Mas ainda assim o cínico explica: “Jazz é o sobre o futuro.” Tem absoluta razão. Mas enquanto esse bandido já o assassinou, Sebastian tenta mantê-lo vivo com massagens cardíacas. E ninguém pergunta ao jazz o que ele quer.

Nesse ponto, é necessário comparar Chazelle com Chazelle. Seu brilhante WHIPLASH – EM BUSCA DA PERFEIÇÃO, aprofunda essa discussão. O jovem baterista escorre sangue para se tornar tão magnífico quanto Buddy Rich. Para isso se submete a opressão do seu professor de música (que por sua vez deve ter tido aulas com o sargento de A FORÇA DO DESTINO). O filme não trata de perfeição. Trata de bullying. De uma mentira transformada em transcendência. De uma paródia de esforço travestida de violência. O passado surge como feitor. Não inspira. Destrói fingindo construir.

WHIPLASH é um filme formidável. O descompromissado concorda dessa vez.

“O jazz só existe ao vivo”, Sebastian explica para Mia. Pode ser. Mas porque ele soa mais vibrante e verdadeiro em discos gravados há sessenta anos ? Talvez porque um dos aspectos fundamentais do jazz é a busca da revolução. Do futuro. O jazz de Sebastian é agradável. Mas... convencional... Sebastian quer apenas um “lounge” mais sofisticado para recriar e recrear.

O antipático afirma: Esse é o mesmo problema do musical de Chazelle. Não acrescenta ao gênero. Apenas se diverte com ele.

O descompromissado pergunta qual o problema disso. Usar o jazz como pedra de toque para desancar o filme é necessário? Infelizmente sim. O jazz não está sendo preservado em LA LA LAND. Está sendo exumado.

Chazelle se aproxima do musical como um resgate para recriar e recrear. Um filme precisa tatuar por inteiro sua heroína. Ninguém reclama quando, numa sala de projeção, Mia fica na frente da tela procurando Sebastian inundada pela luz do projetor. É ali que ela deve estar. A expressão máxima do 3-D. O momento é bonito. Vão existir outros. Danças oníricas entre as estrelas. Desengonçados e sublimes balés. Solilóquios musicados. O descompromissado tem razão em apreciar todos. Ele talvez se irrite com a falta de músicas no terceiro ato. Tudo fica “sério”. O antipático aproveita a deixa para dizer que será o ato semelhante a um seriado dramático do Netflix. Excesso desnecessário de maldade.

Mas o descompromissado contra-ataca. E sua carta é forte: Mia. A melhor coisa de LA LA LAND.

Mia traz algo insuspeitado para um musical. Realidade. Seu objetivo é se libertar, não da mediocridade, mas dos sonhos que não se realizam. Sua direção parece a mesma de Sebastian, mas seu veículo é outro. Não existem vacas sagradas. Existem memórias afetivas. Existem incansáveis tentativas. Um campo de batalha em si mesma. Perseverar. Um passo para a frente. Dois para trás.

Mia quer atuar. Escrever peças. Seus sonhos se projetam na direção do futuro. Ela não olha pelo retrovisor.

Um paradoxo proposto por Chazelle. O pianista, que está preso ao passado de um gênero que se projetava no futuro, ama a atriz que quer se lançar ao futuro. O amor é correspondido. Vetores opostos. Yin e Yang. Dia e noite. Luz e sombra. Ela se fascina com a paixão dele pela música que ama. Ele a estimula a sonhar. O descompromissado sorri.

Temos estabelecida uma tensão (não apenas sexual). O final faz todo o sentido e a sequência musical de encerramento poderia ser encarada como um ato de desespero. (Sim. O antipático retornou.) Uma nova exumação fantasiada de homenagem. Sonhar não basta. É preciso descer das estrelas e tocar o chão.

O descompromissado espera que o antipático admita que o final é bom. A contragosto, o antipático concorda.

Talvez o erro seja encarar LA LA LAND como um musical no sentido clássico. É provável que Godard se sentisse mais à vontade com ele e fornecesse mais consistência. Mas isso está no reino das suposições. O fato é que temos um filme que vem arrebatando plateias. A explicação final do motivo pode ser porque um mundo sufocante precisa de um filme que sugira aos espectadores que saiam cantando e dançando pelas ruas. Alguma alegria desesperada é necessária. Ratos presos no meio do engarrafamento esperando o gato do tempo. O agridoce vai ter que bastar. Afinal estamos encurralados num terceiro ato sem canções.

LA LA LAND é como o carnaval. É brincar enquanto dura. Depois, é deixar cair o pesado martelo da realidade.

Ainda existiriam outras considerações. Mas o antipático vê o descompromissado sair cantando e dançando extasiado. Suspira. É deixar para lá. Estragar a alegria dos outros? Qual o sentido? No fim, talvez o descompromisso seja a atitude correta. Melhor então é se refastelar numa poltrona aconchegante e deixar a mente singrar na beleza de Emma Stone projetada na tela. Afinal de contas, até os antipáticos são capazes de sonhar. Them there eyes...

15 de fevereiro de 2014

THE BYSTANDER ANTHOLOGY

By The Classics. - Mais um texto do Bystander-newsletter original. Como sempre, segue sem correções ou atualizações. Está exatamente como na época da publicação. Aqui prestamos um tributo à dois artistas que levaram a experiência da música ao doce território do gênio e do prazer. Favoritos eternos desse By que vos escreve. Amigos que tornam a vida uma experiência profunda e feliz. Ei-los:

Redigido em 10 de Janeiro de 2003 - Número 11 - Volume 2
 Ficaria feliz em compartilhar com vocês, amigos leitores, alguns textos escritos numa galáxia distante, há muito tempo. Esse foi redigido por esse Bystander para a GAZETA MERCANTIL, em setembro de 2001, e se refere ao músico de jazz favorito desse que vos fala. Num gesto de puro “fanismo”, aqui está ele de novo para a sua leitura e o seu prazer.
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JOHN COLTRANE – 75 ANOS DE UM AMOR SUPREMO.
 Por Ricardo Soneto

 Não existe tristeza maior para o fã de jazz do que ouvir alguém afirmar que não conhece John Coltrane. Surge logo uma necessidade ansiosa de apresentar para o novato todos os detalhes da obra do saxofonista. Mas não é uma tarefa fácil. Como explicar a importância desse artista para a música do século XX? Como definir toda a amplitude da revolução impetrada por ele dentro do jazz, através de uma busca pessoal emocionante, narrada disco a disco? Nesse ano de 2001, em que se comemoram os 75 anos do nascimento desse músico fenomenal, vale a pena refletir sobre essas perguntas e curtir o prazer das respostas.

 John Coltrane nasceu em 23 de setembro de 1926, na cidade de Hamlet, na Carolina do Norte, e cresceu na cidade de High Point, no mesmo estado. É curioso como os nomes dessas cidades parecem exemplificar bem o seu modo de encarar a música: como o personagem de Shakespeare, ele se mantinha numa estado de busca total por uma verdade elusiva, mas, ao contrário do príncipe hesitante, afirmava com convicção cada item descoberto. Sua carreira musical se iniciou na década de 40 em uma série de grupos, que incluíram a big band de Dizzy Gillespie e uma breve participação na orquestra de Duke Ellington. Mas são os doze anos, entre 1955 e 1967, que correspondem ao período da construção do mito, marcado por vários momentos de puro brilho.

 Em 55, Coltrane começa a trabalhar com Miles Davis, o genial e inquieto trompetista. Essa colaboração iria produzir alguns dos discos mais importantes do gênero, como “MILESTONES” e “ROUND MIDNIGHT”. De fato, iria resultar naquele que muitos especialistas consideram o melhor disco da história do jazz: o belo KIND OF BLUE, um marco da exploração modal. O trabalho permanece até hoje como o disco de jazz mais vendido de todos os tempos (mais de 20 milhões de cópias) e basta escutá-lo para entender o porquê. Vale lembrar que ele foi relançado recentemente no Brasil, pela Sony, por um preço bastante simpático. É comprar e ser feliz.

No final da década de cinquenta, os seus trabalhos como líder, que começam a surgir, deram início aos vários capítulos de uma saga muito pessoal, melhor definida pelo crítico americano Nat Hentoff: “A marca registrada de Coltrane era o seu som único, que falava da procura incessante por uma perfeição que, mesmo nos reinos da abstração mais elevada, sempre se mostrava apaixonada e viva”. Vale a pena citar dois discos desse período: BLUE TRAIN, para o selo Blue Note, junto com o trompetista Lee Morgan e o trombonista Curtis Fuller e a sua primeira obra prima: GIANTS STEPS, para a Atlantic. Aqui o solo vertiginoso que se segue ao tema da faixa título iria redefinir o sentido do termo drive, ou seja, a capacidade que o músico de jazz tem de aplicar sucessivos acordes em múltiplas escalas, de forma incansável e criativa. Coltrane, assim, se colocava ao lado de outros mestres livres nessa arte, como Sidney Bechet, Coleman Hawkins e Charlie Parker.

É na Atlantic, também, que ele monta, junto com McCoy Tyner no piano, Elvin Jones na bateria e Reggie Workman no baixo (depois substituído por Jim Garrison) um dos grupos mais perfeitos do jazz. E, como ouvir a excelência desse quarteto é a melhor forma de celebrar esse aniversário, tomamos a liberdade de recomendar os seguintes discos, que fornecem pistas para uma compreensão plena da arte de John Coltrane. São eles:

 - MY FAVORITE THING (Atlantic - 1961) Essa valsa de Rodgers & Hammerstein, extraída da peça da Broadway The Sound of Music (que resultou no popular filme  “A Noviça Rebelde”), foi gravada dezoito vezes por Coltrane. Para ele a questão não se resumia apenas em transformar o tempo normal de 3/4 num empolgante 6/8 mas, através de cada versão, revelar um novo aspecto dentro de um território de inesgotáveis possibilidades. Vale a pena usar a gravação original como ponto de partida para se conhecer e desfrutar da rara e quase telepática interação do seu grupo. A experiência pode ser desconcertante. As idéias novas pareciam não parar de jorrar. Quarenta anos depois, os treze minutos dessa apresentação inicial ainda tiram o fôlego de muitos ouvintes.

 - A LOVE SUPREME (Impulse - 1964) Nesse disco se pode descobrir uma das características mais fascinantes do saxofonista: sua intensa capacidade de se ligar ao ato de tocar, o transformando num transe quase meditativo. O objetivo do disco era mostrar que a experiência musical, fosse tocando ou escutando, podia ser um  canal para o amor supremo de Deus. Longe de ser um trabalho gospel, entretanto, as faixas dessa suíte utilizam o jazz mais intenso para cumprir esse propósito. Humilde diante da sua arte e do seu criador, Coltrane estabelece um comovente evangelho íntimo.

- BALLADS (Impulse – 1962) Lírico, e se permitindo ser o mais melódico e suave possível, Coltrane cria a melhor trilha sonora para o melhor dos romances e descobre com isso mais uma vasta possibilidade de beleza. Disco imprescindível para quem está apaixonado. E ponto final.

- CRESCENT (Impulse – 1964) Momento de recapitulação que prepara o quarteto para A LOVE SUPREME. O que se mostra evidente é a serenidade melancólica dos temas. Faixas como “Bessie’s Blues” ou “Lonnie’s Laments” são executadas por um sax tenor extrovertido e seguro de estar no caminho certo. Como não se comover com tamanha honestidade para com o seu próprio compromisso artístico?
 Enfim, para começar a entender um pouco da importância da obra de Coltrane basta perfilar algumas das palavras usadas acima: intensidade, paixão, honestidade, lirismo, compromisso, serenidade, humildade, fascínio, exploração, brilho, criatividade, excelência, segurança, beleza, perfeição, interação, arte, liberdade, música e amor supremo.
 Supremo amor que continuou até o fim, mesmo quando o quarteto se dissolveu e o saxofonista continuou seu trabalho se aventurando em abstrações cada vez mais profundas junto com sua mulher, a pianista Alice Coltrane. Na ocasião da sua morte, em 1967, ficou a sensação de que nem tudo havia sido dito. Sensação que permanece até hoje. Como saciar isso?

 Pensando bem, não existe alegria maior do que não conhecer John Coltrane. Poder escutar, pela primeira vez, qualquer um dos discos gravado por ele? Tomar contato com o talento de um músico que foi capaz de fazer uma arte de tal magnitude e que, mesmo assim, deixou claro todos os trajetos humanos que o levaram até ela?

 Seja você um jazzófilo escolado ou um incauto ouvinte, valerá sempre a pena encher o ouvido e a alma com essa música. Sua vida vai te agradecer.
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 De volta à 2003. Sabem essas atitudes do antigo realismo socialista chinês, do tipo colocarem uma arma na sua cabeça e pedirem para você escolher entre isso ou aquilo? Bem, mirassem na cabeça desse By e perguntassem quem ele gosta mais, se Coltrane ou Sinatra, a resposta seria: “Atirem!” É, sinceramente, impossível escolher. Ambos foram Everests do talento e da arte. Incomparáveis e (pela aparência do andar da carroça até agora) insubstituíveis.
 No entanto, também em 2001, sabendo do amor intransigente que esse Bystander nutre pela arte de “The Voice”, o leitor fraterno amigo (ou fraterno amigo leitor?) Ricardo Cota pediu a esse pobre que escolhesse algo menos severo: as dez interpretações favoritas feitas por Frank. Nenhum pedido podia ser realizado com mais prazer.

Seguem as respostas abaixo (adaptadas para esse newsletter). Enjoy!

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AS DEZ MAIS DE FRANK
Escolher dez gravações favoritas de Frank Sinatra é como escolher dez filhos prediletos. A sensação de injustiça com alguém é constante. Oh, destino inclemente!
 Mas vamos lá!
 Sinatra foi o melhor cantor do século XX. Ponto! E a melhor forma de provar isso é simplesmente ouvir algumas das faixas que estão aqui. Mas não se prenda a essa "byselection" apenas, procure fazer a sua, leitor. Frank se torna nosso chegado à primeira audição.
Esse modesto By escolheu essas imodestas dez (seguidas de uma breve explicação). A ordem não corresponde à preferência. O By prefere todas e mais quinhentas e tantas. Cierto?
1-     I’VE GOT YOU UNDER MY SKIN
Barbada! Essa gravação de 1956 (disco: “Songs For Swingin’ Lovers”) ganha todos os concursos de fãs. E por vários motivos: o arranjo de Nelson Riddle, com batida cardíaca e elegante, o solo de trombone entusiástico de Milt Bernhardt e Sinatra explicando para todos porque estava na Terra. Precisa mais?
 2-     NIGHT & DAY
Mais uma de Cole Porter? Foi gravada em 1962 (disco: “Sinatra & Strings”). Grandiosa e épica,  serve como testemunho de todos os Sinatras (o da Columbia, o da Capitol e o da Reprise) projetando a beleza de amar como um ato pleno, digno ápice da condição humana. O arranjo de Don Costa colabora para isso.
 3-     YOU GO TO MY HEAD
De julho de 1945 (selo Columbia). Como alguém dotado de tal apuro vocal pode ser tão lírico e não cantar ópera? A letra de J.F Coots devia ser prece!
 4-     ALL OR NOTHING AT ALL
De 1940. Gravada com a orquestra de Harry James (seis meses antes de Frank se mudar para a  banda de Tommy Dorsey). Com apenas 25 anos, Sinatra já mostrava porque ia dar trabalho.
 5-     I’LL BE SEEING YOU
Também de 1940. Perfeita e comovente. Sinatra encontra em Tommy Dorsey o seu mestre de  respiração ideal.
6-     WHAT’S NEW?
Do disco “Sinatra Sings For Only The Lonely”, de 1958. Páreo duro é escolher uma faixa desse álbum que sinatrófilos de plantão consideram um dos melhores do chairman. Disco tão perigoso para quem está na fossa, que o júnior de Frank afirmou que ele só deveria ser vendido sob prescrição médica. Pleno de razão está esse menino. Ficamos com “What’s New”, pela sua angústia derramada, provando que se pode sofrer por amor e ser um gigante por isso. Dá-lhe, garoto! (Algum fã pode perguntar: “Por que não ‘Angel Eyes’?” Pois é! Viu como é difícil?).
 7-     THE LADY IS A TRAMP
Aqui temos algo curioso: o By está falando da gravação feita para o filme “Meus Dois Carinhos” (Pal Joey), de 1957, e não a que está no disco com a trilha sonora. A que está no filme mesmo. O melhor momento de Frank no cinema. Cínico, seguro, botando para quebrar (desculpem o entusiasmo, mas é isso mesmo)! Nenhuma outra interpretação dele para essa música atingiu a perfeição dessa gravação fílmica. Ouçam com atenção e vejam se não é verdade.
 8-     OH! LOOK AT ME NOW
Ano: 1957.
Disco: “A Swingin’ Affair
Faixa acima: A melhor definição para bacana! O mestre do hipercool explica a felicidade da transformação produzida por amar a pessoa certa. Arranjo de Nelson Riddle vestindo a voz com a perfeição de sempre. Ah! Se a vida fosse sempre assim!
9-     ONE FROM MY BABY
Perdoem outro preciosismo, mas não falamos da faixa do disco comentado na seleção número 6, mas sim de um teste feito um dia antes da gravação (24 de junho de 1958) por Frank e pelo seu pianista favorito, o fiel escudeiro Bill Miller. Essa gravação deveria ter sido apagada, mas foi esquecida nos arquivos da Capitol por 32 anos. Lançada na simpática caixinha “Frank Sinatra – The Capitol Years”, de 1990, se tornou um tesouro comparável ao das arcas esquecidas no fundo dos oceanos!
Voz e piano.
Nada mais.
E tudo.
10- A FAIXA ESQUECIDA
Existem monumentos dedicados ao bravo soldado desconhecido. Aqui o By faz um equivalente para essa seleção, porque ele sabe que, fosse qual fosse a música escolhida agora, ela não iria impedir esse que vos escreve de acordar no meio da madrugada e reclamar por não ter escolhido outra. “Por que não ‘Ol’ Man River’? Por que não ‘If You Are But A Dream’? Por que não tudo com Tom Jobim?
 É difícil! É muito difícil!
 Ficam então essas jóias, que tem feito a vida desse Bystander muito feliz. Essas e outras quinhentas e tantas!
 Ponto!
 Keep swingin’, babys!

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Retornamos à 2014.  Esse texto foi publicado há 11 anos, e esse Bystander ainda concorda com tudo que opinou. Reafirmando: adotar o entusiasmo por esses artistas é uma atitude para toda a vida. A recompensa é uma trilha sonora soberba. Uma consciência das possibilidades corajosas da arte, do verdadeiro talento... e da mais absurda felicidade. Nesse momento da história em que nunca foi tão fácil ter acesso aos itens apresentados acima, fica a sugestão: Explorem... Divirtam-se... Encantem-se... And, by the way, keep swingin' kids! Seeya!

24 de junho de 2011

“THEY ALL LAUGHED OF DETECTIVE COLUMBO!”




By The Classics - Peter Falk faleceu hoje. O Bystander não tem todas as palavras de gratidão possíveis. Portanto compartilha, aqui, um antigo texto do Bystander-newsletter original dedicado ao tenente justiceiro (sem correções ou atualizações). O que o detetive ensinava era simples: "abram o olho! O peixe graúdo comete o crime e segue aplaudido? Se depender de mim, não!" Quão atual. Sempre.

6 de Outubro de 1998 - Número 4 – Volume 1

O canal USA da NET está dando a oportunidade de comemorar os trinta e um anos do (sem sombra de dúvida) melhor detetive da história da televisão: o impagável tenente Columbo. Todo o domingo desse mês de outubro (sempre às dez da manhã) será exibido um filme dedicado ao personagem que marcou, de modo profundo, a carreira do ator Peter Falk (em ASAS DO DESEJO, de Wenders, os personagens em geral se referem a ele com o nome do astuto tenente). A festa começou no último dia quatro, com a exibição do telefilme RECEITA PARA UM ASSASSINATO (Prescription: Murder) de 1967, baseado na peça de Richard Levinson e William Link.

O filme é uma verdadeira raridade. Tenho a impressão que a última vez que passou por aqui foi na TV TUPI. É delicioso constatar que todos os mecanismos e rituais que fazem o charme de todos os episódios de COLUMBO já estavam presentes na sua gênese teatral e na sua primeira aparição na telinha. São eles, somados a brilhante interpretação de Falk, que fizeram desse seriado algo mais do que um simples jogo de gato e rato policial. Vamos descrevê-los:

Primeiramente nós sempre sabemos quem é o assassino. Como cúmplices, observamos um crime sempre perfeito, bem executado e insondável. Seu perpetror é, com freqüência, alguém acima de qualquer suspeita. Ora pode ser o dono de uma galeria de arte, que quer aumentar a venda da sua coleção de quadros matando o artista, ora pode ser um escritor policial, ao estilo Ellery Queen, que mata o seu parceiro talentoso (na verdade, o real autor dos livros) quando esse decide romper a parceria. São crimes estranhamente adequados para esses tempos de frieza profissional em que estamos envolvidos. Poderia ser esse o motivo da surpreendente atualidade de COLUMBO, mas há mais: existe a atitude paladina desse tenente de sobretudo encardido e charuto empestento, que se recusa a se curvar diante da posição social do criminoso. Os movimentos são sempre:

A) Parecer humilde e um tanto vago;

B) Perturbar com perguntas enervantes e precisas;

C) Deixar claro para o assassino que ele sabe quem é o criminoso, e

D) Aplicar um desmascaramento que corresponda à medida do crime.

A mente analítica de Columbo e a personalidade de sua presa típica foram bem perscrutadas em uma cena de RECEITA PARA UM ASSASSINATO, onde o famoso psiquiatra (interpretado por Gene Berry), um calculista assassino da própria esposa, tem um ácido diálogo (transcrito a seguir) com seu grudento perseguidor. Ambos estão no consultório do doutor, saboreando um Jack Daniel’s. É tarde da noite:

(...).

COLUMBO- Gosta de ler, doutor?

Dr.FLEMING- Gosto sim!

COLUMBO- Contos policiais?

DR.FLEMING- Não! Disso não!

COLUMBO- Ah! Eu adoro! Eu acho bom! Repousante! Mas o problema é: creio que eles não tem nada a ver com a vida real! Digo: o culpado do crime acaba sendo pego! E eu e o senhor sabemos que nem sempre termina assim!

DR.FLEMING- Você não cansa, não é?

COLUMBO- De que?

DR.FLEMING- As insinuações! A mudança de passo! É uma caixa de truques, Columbo! Até esse charuto acessório que você usa!

COLUMBO- Ah! Um charutinho a toa!

DR.FLEMING- (frio) Vou lhe dizer uma coisa sobre você, Columbo! Diz que precisa de um psiquiatra. Talvez precise, talvez não! Mas você é um exemplo perfeito de compensação!

COLUMBO- De que?

DR.FLEMING- Compensação! Adaptabilidade! Você é um homem inteligente, Columbo, mas se esconde fingindo que é algo que não é! Por que? Por causa da sua aparência! Você pensa que nunca acertará por meio da aparência! Por isso faz de um defeito uma virtude: pega as pessoas de surpresa! Elas o subestimam e é assim que você as vence! Como vir até meu consultório agora!

COLUMBO- Puxa! Você me pegou direitinho, doutor! Eu acho que é preciso ter cuidado com o senhor, porque é um bom conhecedor das pessoas!

DR.FLEMING- Agora está tentando a adulação!

COLUMBO- Não, não! Eu estou falando sério mesmo! Isso é bom, doutor! Claro! É a sua profissão e o senhor estudou muitos anos! Mas ainda assim é engraçado: a pessoa senta naquela cadeira por alguns instantes e o senhor sabe tudo sobre ela!

DR.FLEMING- (fleumático) Não é bem assim! Psiquiatria não é um truque de salão!

COLUMBO- Eu não quis dizer isso! Só estava pensando se... Não, não! Isso não é possível!

DR.FLEMING- O que?

COLUMBO- Eu sei que é bem fácil conhecer um paciente, ou alguém que, como eu, esteja bem perto o tempo todo, mas com um indivíduo que não conheça... Um sujeito que nunca encontrou antes... O senhor pode prever as suas reações?

DR.FLEMING- Por acaso tem alguma pessoa em mente?

COLUMBO- Não, não! Ninguém em particular! Só um tipo qualquer!

DR.FLEMING- Como um assassino, por exemplo?

COLUMBO- Bem, já que o senhor tocou nisso! Acho que estamos no mesmo comprimento de onda!

DR.FLEMING- É, eu acho que sim! (pausa) A respeito desse assassino hipotético...

COLUMBO- É, eu não estou falando do tipo de cabeça quente comum, como um sujeito que quebra uma garrafa na cabeça do outro! Eu me refiro ao tipo que prepara a coisa toda, com detalhes, passo a passo! O que sabe o senhor sobre esse tipo de homem, doutor?

DR.FLEMING- Eu devia lhe cobrar! Mas, como está numa base teórica, chamemos a isso de consulta grátis!

COLUMBO- Obrigado!

DR.FLEMING- Falamos de um homem que comete um crime! Não do tipo comum, de um marginal de rua, mas de um projeto! Elaborado! Intelectual! O que sabemos sobre esse homem? Naturalmente ele não é um impulsivo! Ele planeja, calcula, minimiza os riscos! Ele é orientado pela sua mente, não pelas emoções! E é, provavelmente, bem educado também!

COLUMBO- Como, talvez, um homem profissional!

DR.FLEMING- Talvez! De qualquer modo, um homem ordeiro, com olho para o detalhe... E coragem!

COLUMBO- Coragem?!

DR.FLEMING- Certamente! Ninguém se mete numa coisa dessas, seja lá o que possa ser, sem um forte sistema nervoso!

COLUMBO- É! O senhor pode estar certo, doutor! Mas, uma coisa me aborrece: o homem que estamos falando tirou uma vida humana! O senhor não diria que é um anormal?

DR.FLEMING- Por quê? Porque cometeu um ato imoral? A moral é condicionada, tenente! É relativa como tudo mais nos nossos dias! Nosso homem pode ser são, como você ou eu! Matar pode ser repugnante para ele, mas, se é a única solução, ele a usa! Isso é pragmatismo, meu amigo, não insanidade!

COLUMBO- Diga-me, doutor, como se pega um homem como esse?

DR.FLEMING- Não se pega!

COLUMBO- Deve ter razão! Ele parece esperto demais para nós! Mas o que eu digo é que os tiras não são os caras mais vivos do mundo! Claro, temos alguma coisa a nosso favor: somos profissionais... Mas, em todo o caso, esse seu amigo, o assassino, claro, ele é muito esperto! Mas é um amador! Ele tem uma chance de aprender! Só uma! Mas conosco é diferente: é uma profissão! Entende? Nós passamos por isso cem vezes num ano! E lhe digo doutor: é um bocado de prática!

DR.FLEMING- No seu caso isso não o ajudou, não é? Toda essa experiência para chegar à conclusão errada!

COLUMBO- Que quer dizer?

DR.FLEMING- Eu não matei minha esposa!

COLUMBO- Mas eu não disse isso!

DR.FLEMING- Não! É verdade! Insinuou! Insinuar cabe melhor! Mas, se eu matei, e eu disse “se”, você nunca vai conseguir provar!

(...).

Nesse próximo domingo, dia 11, será exibido o segundo piloto: RESGATE DE UM MORTO (Ranson for A Dead Man), de 1971, onde Columbo atormenta a vida de uma advogada assassina interpretada por Lee Grant. Não deixem de assistir! Columbo pode ser considerado tão clássico quanto o Philip Marlowe, de Chandler, ou o Sherlock Holmes, de Doyle. É ver e constatar.

Afinal, se pensarmos em eventos no nosso território nacional, quando um patético pequeno Polegar, após ser esmagado pelo moedor da fama e da falta de talento, vai preso por roubar um vale refeição e um Real para, logo em seguida, ser jogado às feras da cela e da mídia (claro que crime é crime, mas que castigo é pior do que esse?) enquanto um tal Sergio Naya passeia solto por aí!?!!? A vontade que se tem é de gritar: TENENTE COLUMBO, CADÊ VOCÊ?

2 de junho de 2011

SONHOS EM CELULOSE E CELULOIDE

BY THE CLASSICS - The Bystander foi criado como newsletter (não sabe o que é? Pergunte à sua mãe) para ser distribuído para amigos, num mundo pré-blog ou twitter, há muito tempo, quando os mamutes pastavam nas planíces. Como o acervo é grande, a idéia é selecionar alguns dos textos originais para a sua versão blog. Esse foi escrito na ocasião do início do novo milênio e recomendava uma graphic novel e uma série de filmes. O livro foi lançado esse ano, com o nome de SINAL E RUÍDO, pela editora Conrad, e, em 2009, os filmes foram reunidos em uma caixa de quatro DVDs da Versátil. O texto permanece sem atualizações corretivas, para manter o espírito da época. Uma década atrás. Os afetos permanecem. Viva Kris, Neil e Dave. Bom trabalho amigos!

THE BYSTANDER - 20 de Janeiro de 2001 - Numero 1 (Volume 2)

Sobrou um champanhe dessa ulti-ma virada. Vamos abrí-la? Enquanto nosso discreto mordomo Jarvis James cuida de selecionar as taças e gelar a bebida, esse By vai distraindo vocês falando de duas obras que merecem ser citadas nesse “overture” de século novo. São elas uma série de TV e uma graphic novel. Nenhuma delas é recente. Então por quê agora?



Sigam-me pelo corredor dos sonhos (thanks H.Ellison!) e vocês entenderão.


Primeiro a graphic novel: Em 1989, o escritor inglês Neil Gaiman era o nome mais importante do campo dos gibis, graças ao sucesso da revista em quadrinhos SANDMAN, onde uma mitologia fantástica, representada por uma família de seres eternos, encantava os leitores em histórias com fortes raízes literárias (sua fantasia sobre as possíveis “origens” da peça SONHO DE UMA NOITE DE VERAO, foi a primeira história em quadrinhos a ganhar o prêmio máximo do World Fantasy Award). Todo esse prestígio motivou a revista inglesa THE FACE a convidar Gaiman e o artista gráfico Dave McKean (responsável pelas magníficas capas da SANDMAN) para criarem uma história original que seria publicada em capítulos. Convite feito. Convite aceito.

O resultado foi SIGNAL TO NOISE.

A série teve boa repercussão do público e da crítica especializada em quadrinhos. Ficou por ai. Foi reunida em um único volume pela editora Dark Horse, em 1992. Vendeu sem grandes estardalhaços. E foi tudo.

Esse Bystander lamenta que SIGNAL TO NOISE tenha ficado uma obra tão obscura para um público maior. Porque é um trabalho e tanto. E muito pertinente para esse momento histórico. Senão, vejamos do que se trata:

Um prestigiado diretor de cinema de 60 anos, ganhador de prêmios como a palma de ouro do Festival de Cannes, tem uma idéia para o seu próximo filme: o Apocalipse, direcionando nossos olhos para o dia 31 de Dezembro de 999 DC, em uma pequena vila num lugar indeterminado na Europa, onde todos têm certeza de que o fim está próximo. Mostrar suas reações, seus dramas. Mostrar a humanidade diante de uma certeza devastadora. Nas mãos de um diretor perfeito como ele, uma futura obra-prima.

Mas …

Em uma visita ao médico (coisa que ele sempre detestou) para tratar de algo bobo, os exames revelam um tumor inoperável. Nosso diretor tem poucos meses de vida. Não haverá filme, pois nada foi sequer escrito. Uma depressão profunda se instala.

Porém …

Algo acontece. Automaticamente. Impulsivamente. Nosso diretor começa a escrever o roteiro. Sem arroubos dramáticos de afirmação da vida sobre a morte. Apenas uma obra lançada no papel. Onde o fim do mundo das pessoas naquela vila é confrontado com o fim da vida daquele artista que sabe que ninguém vai morrer naquela noite milenar. Somos colocados diante do Apocalipse de todos nós. Ou talvez não…

Sobre a noite de século-novo que ele não verá e sobre sua condição pessoal nesse mundo que se fragmenta, nosso diretor escreve: "Lá estarão milhares e milhares de pessoas. Todas rindo Todas gritando. Pegas na alegria de serem humanas. De estarem experimentando a vida naquele momento, sabendo que, se foram tão longe até ali, talvez haja esperança para se ir mais além! E eu não verei nada disso. Os críticos costumavam dizer que os meus filmes eram tristes. E eu concordava com eles. Mas agora já não tenho tanta certeza. Não sei. Vivemos em uma sociedade que guarda suas visões utópicas nos comercias de TV. Visões mágicas de um mundo hospitaleiro impossível. Povoado por pessoas atraentes com luzes nos olhos. Homens, mulheres e crianças. Onde ninguém morre. Onde tudo o que se precisa é um produto barato e fácil de conseguir: um pacote de amendoim salgado ou um limpador de tapetes a vapor. Tudo para trazer uma felicidade imediata e não diluída. Nos meus mundos as pessoas morriam e eu me achava honesto, achava que estava dizendo a verdade. Eu achava, mas eles eram atores e se fingiam de morto. E essa dor no meu peito é como um soco de raiva. Raiva pelo meu corpo me trair. Raiva pelo meu mundo, pelos meus sonhos e pela minha vida não seguirem pela eternidade. Raiva porque o melhor que eu podia ter criado ficou na minha cabeça. Tudo o que eu fiz de errado seria corrigido no próximo filme, que seria sempre o que eu faria melhor. Se eu tivesse tempo.”

E ele continua escrevendo o roteiro. Somos convidados a assistir um filme que jamais será feito, porque só existe na cabeça do seu moribundo criador, que observa sua parede coberta de fotos de desconhecidos, que se tornam as figuras principais nesse exercício da arte na mente. Escreve ele:

"Não acredito mais em Apocalipses. Acredito em Apocatástases. Acho que esse pode ser o título para o filme. É um nome problemático para ser pronunciado e quase ninguém sabe o que significa, mas de um jeito ou de outro, é um grande título! A palavra quer dizer: 1) Restauração, restabelecimento, renovação. 2) Retorno a uma condição prévia. 3) (astronomia) Retorno para a mesma posição aparente, complementação de um período de revolução. Gosto disso!"

O roteiro é finalizado e enviado para uma amiga. Nos momentos derradeiros da sua vida, nosso diretor é mandado direto para passar os últimos minutos de 999, ao lado dos habitantes da sua vila imaginaria porque “você deve sempre celebrar com quem você ama!”.

E o final esse By não conta, porque é visual demais, e tudo aqui é só cinqüenta por cento sem a arte fenomenal de Dave McKean. Mas SIGNAL TO NOISE ficou ribombando como um martelo na cabeça desse Bystander, durante essa virada de século.

Uma obra que fala de coisas que alguns gostariam de varrer para baixo de algum tapete, o que seria uma bobagem, pelo seu forte conteúdo poético. De fato, uma abordagem madura e singela sobre a questão da mortalidade (como se esse trabalho só tratasse disso) não chega a ser uma novidade para Gaiman, que criou uma das mais positivas e bonitas representações da morte, na figura de Death, a bela irmã de Dream (em SANDMAN). Humana, carinhosa e terrivelmente simpática, é dela o último sorriso que será visto.

Reforça-se: SIGNAL TO NOISE não é uma obra sobre morbidez. Muito pelo contrário. É sobre viver, criar, amar o próximo, descobrir os outros em nós e celebrar a nossa perplexa humanidade. Características que nos levam ao criador da nossa segunda obra: o diretor polonês Krzysztof Kieslowski.

Falecido por conseqüência de complicações cardíacas, no dia 13 de Março de 1996, Kieslowski poderia muito bem ser o cineasta da história de Gaiman. Relativamente popular, graças ao sucesso de filmes como A DUPLA VIDA DE VERONIQUE e a Trilogia das Cores (A LIBERDADE É AZUL; A IGUALDADE É BRANCA; A FRATERNIDADE É VERMELHA), Kieslowski tinha um olhar extremamente carinhoso sobre o ser humano. Impregnado de detalhes afetivos que reconheciam uma insuspeitada beleza em todos nós. Evidente que isso não era exclusivo dele. Outros diretores também possuíam esse carinho. Bergman, Antonioni, Fellini, De Sica, Wilder etc, Bergman ainda está vivo, assim como Antonioni e Wilder, mas o polonês mesclava uma melancolia com uma atitude redentora que era só dele. O Bystander gostaria de relembrá-lo nesse primeiro mês de milênio, recomendando a todos os leitores o que talvez seja a sua melhor obra: O DECÁLOGO. Dizia Kieslowski:

“O Decálogo é uma das principais fundações éticas da nossa sociedade. Todos estão mais ou menos familiarizados com os Dez Mandamentos, e concordam com eles, mas ninguém presta realmente atenção no que significam. E aí estava a minha proposta: esses filmes precisavam ser influenciados por cada mandamento na mesma medida em que cada mandamento influencia as nossas vidas diárias”.

Filmados para a TV polonesa em 1988, essa série de dez filmes procurava expressar cada um dos Dez Mandamentos como um paradoxo moral diante da complexa ética pessoal de cada indivíduo.

“Sempre procurei pensar em escalas pequenas, e é certo que jamais faria um filme de dimensões gigantescas ou globais. Isso não me interessa porque não acredito que a sociedade exista, ou que as nações existam. Acho que elas apenas estão por ai como um conceito. São 60 milhões de indivíduos franceses, ou 40 milhões de indivíduos poloneses, ou 65 milhões de indivíduos ingleses. Isso existe. Isso importa. Eles são indivíduos. Eles são pessoas.”

O desenho da trama do segundo decálogo serve de exemplo: Dorota, uma bela violinista (interpretada por Krystina Janda) começa a seguir de maneira incansável o médico que esta tratando do seu quase desenganado marido. Quer saber com certeza se ele vive ou morre. O medico insiste que um diagnóstico tão preciso é impossível. A perseguição prossegue até que uma estressada Dorota decide revelar ao médico o porque da sua angústia. Durante anos, ela e o esposo tentaram ter filhos, sem sucesso. Agora Dorota está enfim grávida, mas de um outro homem. E o dilema é: se o marido sobreviver ela abortaria a criança para não magoá-lo, mas se a morte for inevitável, ela não gostaria de perder o bebê.

Vida e morte dançam na sua cotidiana perplexidade.

“Para dizer a verdade, nos meus filmes, o amor está sempre em oposição aos elementos. Ele cria dilemas. Ele traz sofrimento. Nós não podemos viver com ele, e nós não podemos viver sem ele. Nos colocamos diante desse mistério: estamos sempre procurando por esse amor que nós vemos nos olhos das pessoas que sofrem por amor. O resultado é que ás vezes fica difícil conseguir finais felizes no meu trabalho”.

E o final do episódio descrito acima esse Bystander não conta, para não tirar o prazer de ninguém, mas, creiam-me, ele é surpreendente na sua delicadeza.

A série já foi exibida em cinematecas pelo país e teve uma exibição pública pela Rede Cultura há uns dez anos atrás (creio). Dois filmes que foram feitos para o cinema foram integrados aos oito roteiros originais e tiveram os seus 88 minutos editados para os 53 do formato de cada episódio. Esses dois foram exibidos nos cinemas daqui, sob os títulos de NÃO MATARÁS e NÃO AMARÁS. Alguém se lembra? Gostaram? Pois então pensem em cada um desses filmes multiplicados dez vezes.

Variando entre drama, tragédia, melodrama, comédia ou um simples passeio pelo bairro. Cada episódio é uma pequena jóia de se assistir. E esse Bystander tem o prazer de informar aos seus leitores que surgiu uma nova oportunidade de vê-los. Não é nenhum colosso em termos de acesso, pois é preciso ter um aparelho de DVD (área 1) e saber falar inglês ou polonês, mas isso também não é nenhuma impossibilidade. Mas é algo que merece ser celebrado por qualquer cinéfilo. Acaba de ser lançada, nos EUA, uma caixa com cinco DVDs contendo a série completa (pesquisem na Amazon). É uma boa chance de se levar, numa tacada, uma obra e tanto e poder testemunhar o talento farto de um diretor que, como o da história de Gaiman, tinha um afeto muito grande por cada um de nós.

“Ao acreditar demais na racionalidade, nossos contemporâneos perderam alguma coisa”, reclamava ele.

Os roteiros do DECALOGO foram reunidos em uma edição de 1991 da Faber & Faber, de Londres. Na introdução desse livro o diretor Stanley Kubrick escreveu:

“Eu sempre relutei muito em destacar um único trabalho de um grande cineasta, por achar que isso tende a simplificar ou minimizar o todo da sua obra. Mas, diante desse livro de roteiros feitos por Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz, não fica impróprio observar como esses autores possuem essa rara habilidade de dramatizar suas idéias, em vez de apenas falar sobre elas. Fazendo isso, elas ganham um poder adicional de permitir que o público faça as suas próprias descobertas em vez de ser apenas manipulado até elas. E esses dois fazem isso com uma habilidade tão incrível, que você nunca percebe, até ser tarde demais, o quão profundamente elas atingiram o seu coração”.

A graça, talvez, esteja nos pequenos detalhes. O jornalista Christopher Marsh notou bem:

“Nos filmes de Kieslowski, até a coisa mais simples que é observada pela janela pode ter um conteúdo dramático. Talvez isso seja mais bem ilustrado se pegarmos a recorrente personagem da senhora idosa que tenta colocar uma garrafa de vidro no “container” de lixo reciclável, e o seu braço não alcança o topo. Ela apareceu nos últimos quatro filmes do diretor, e as reações dos seus personagens principais eram divergentes diante dessa triste e algo patética imagem, uma anciã tentando, com enorme dificuldade, realizar um simples gesto e criando respostas e emoções muito pessoais. Em A DUPLA VIDA DE VERÔNIQUE (1991), Veronika gostaria de ajudar, mas está fraca demais. Julie, em A LIBERDADE É AZUL, vive apenas no seu auto-isolamento e sequer percebe a situação. Karol Karol, em A IGUALDADE É BRANCA, já envolvido na preparação da sua grande vingança, acha tudo muito engraçado. Somente em A FRATERNIDADE É VERMELHA, surge Valentine, forte, generosa e com compaixão suficiente para um simples gesto de bondade, que é apenas ajudar essa pessoa estranha.”

SIGNAL TO NOISE e O DECÁLOGO. Dois trabalhos que possuem o sentimento que esse Bystander gostaria de compartilhar com todos os leitores. Pois se até mesmo um motorista de táxi for capaz de perceber os nossos sentimentos mais felizes, e ficar feliz por isso, essa bem que poderia ser uma cena de um filme de Kieslowski.

Ou Truffant.

Ou Jean Renoir.

Ou Marcel Carnê.

Ou… Mas ai esta nosso Jarvis James com a champanhe! Por favor, podem se servir!

25 de março de 2011

LIZ & RICHARD – RICHARD & LIZ


(dedicado à amiga Sandra Talarico)

Não acredito mais em destino. Só acredito no acaso.

E o encontro é a forma mais fascinante de acaso.

Ora, se não foi por acaso que, nessa terça feira (22 de março), meu irmão, sabendo da minha profunda admiração pelo recém falecido gênio das trilhas-sonoras, John Barry, me presenteou com a caixa de CDs JOHN BARRY REVISITED que contém réplicas em miniatura de quatro LPs raros do mestre. Entre elas, um disco totalmente desconhecido para mim: ELIZABETH TAYLOR IN LONDON, com as músicas originais de um especial para televisão de 1963. A inglesa, filha de pais americanos, retornava ao local do nascimento para celebrá-lo. Como era de se esperar, a música de Barry envolve a suave voz da atriz com a paixão de um bom amante.

Na manhã seguinte, acordo e, de pronto, verifico e-mails. Entre eles, o doce pedido de uma amiga querida (à qual esse texto é dedicado) para que o Bystander prestasse tributo à Elizabeth Taylor.

Foi assim que soube que a voz que me encantara na madrugada anterior havia partido.

Ouví-la na noite da sua morte foi uma das provas da magia do acaso.

Existe muito para se falar sobre Liz. Mas peço que me deixem continuar sendo extremamente pessoal. Explico. A atriz protagonizou a cena que considero o mais perfeito registro de se “estar apaixonado” que o cinema já criou. A cena é carteirinha de cinéfilo. Em “Um Lugar Ao Sol”, Montgomery Clift está quase explodindo de paixão, dançando com ela em um baile, e decide chutar o balde e se declarar. A moça se desfaz em torvelinhos. Se permite girar nos sentimentos até gritar baixinho (é possível) que estavam sendo vistos. Os dois correm para uma varanda e, graças a uma série de closes soberbos, temos o rosto mais lindo, da história desse rosto mais lindo, se perdendo na confirmação ao rapaz de que a paixão é recíproca. Admito. Esse parágrafo é patético na sua vã tentativa de descrever o indescritível. Mesmo poetas, músicos, pintores… Todos patéticos. Nada descreve, representa ou explica uma paixão. Uma paixão se vive. Simples assim (simples?). Mas o quão perto essa cena chegou da coisa real... O quão perto…

Liz atuou no seu especial de TV londrino. E um ano depois, através de um casamento, mostraria ao mundo o que ERA uma paixão.

Porque quero falar de Elizabeth Taylor e de Richard Burton.

Pois foi em 1961, que um Eddie Fischer (para os nerds: o pai de Carrie Fischer) voou em pânico para o set de filmagem, em Roma, de CLEOPATRA, porque a coisa estava pegando fogo. E não era novamente a cidade, e sim sua esposa e a outra estrela do filme. Viagem inútil. Liz e Dick tinham se encontrado. Ambos estavam casados? Um detalhe para se resolver. Mais duro para Richard, que foi castigado pela separação ao ter que aguentar ser chamado de “Mr. Cleopatra” por algum tempo.

¨Tenho sido incontávelmente sortudo na minha vida, mas a maior de todas as sortes tem sido Elizabeth… Ela é uma amante-companheira selvagem e excitante; ela é tímida e esperta; ninguém a faz de boba; ela é uma atriz brilhante; linda para além dos sonhos da pornografia… E ELA ME AMA!”

Burton escreveu, em 1968, essa declaração no seu diário.

Precisa dizer mais alguma coisa?

Liz contou, no primeiro rascunho da sua biografia (depois a passagem foi removida, mas já era tarde) que Eddie, derrotado, foi até o Porto San Stefano, refúgio europeu dos amantes (como se fosse possível se esconder), com uma arma. Ela o recebeu no portão. Ele apontou a pistola para a cabeça dela e disse: “Não se preocupe! Não vou atirar! Você é bonita demais para eu fazer isso!” Ao recordar o incidente, o cantor, aos 81 anos, sentenciou: “O passado é um bom f.d.p…”

Frases. Por sua vez Dick contava que viu Liz pela primeira vez em 1952, na beira de uma piscina. Ela tomava sol e lia. Foi durante uma festa, na primeira visita do galês à Hollywood. Ele olhou a moleca e a achou tão impossívelmente bonita que começou a rir. Saiu, deixando a garota amuada. Quem era o bonitão grosseiro? Em Cinecittà, Elizabeth estava disposta a não virar mais uma marca no cinto do sujeito. Na cara de pau, Burton se aproximou e disse uma única frase: “Alguém já lhe disse que você é muito bonita?”

Pronto.

Nas filmagens, uma cena de beijo precisou de várias tomadas, e os beijos ficavam cada vez mais longos. Joe Mankiewicz, o diretor, se cansou daquela brincadeira dos pombinhos e apenas gritou: “Ok! Valeu! Terminou!”. Vendo que suas ordens não surtiam efeito, se aproximou dos beijoqueiros e disse impaciente: “As crianças preferem que eu grite ‘Corta’?” Vendo que a frase não os afetava, arrematou: “E se eu dizer que está na hora do almoço?”

Liz e Dick se casaram em março de 1964 (boa data). A lua de mel foi no Canadá. Seu retorno à Boston foi monumental. Como se protegessem um casal composto de Beatles, os policiais eram derrubados na rua pela multidão ensandecida. Quando eles conseguiram chegar ao elevador, ela tinha perdido tufos arrancados do seu cabelo e sua orelha sangrava por conta de um brinco roubado enquanto ele tinha perdido todo o lado direito do terno.

No mundo atual, onde a celebridade se tornou profissão, pode ser difícil para alguns entenderem as diferenças entre as crias do star system dos grandes estúdios de antigamente e os abundantes vazios propalados por algumas assesorias de imprensa de hoje (é claro, existem exceções. Sempre existem exceções). Não estamos falando de pessoas plastificadas em curralzinhos vips. Estamos falando de um casal de carne e osso numa década de histeria (vide os Beatles). O mundo não era o bastante para a paixão desse filho de mineiro de carvão. Sua voz de barítono o tornava um dos melhores intérpretes de Shakespeare (alguns dos amantes do bardo o desprezavam por ele “desperdiçar” seu talento em filmecos hollywoodianos. Bem, sempre se pode encontrar alguma atriz bonita em Hollywood, na beira de uma piscina). E, ainda por cima, vinha recém-saído do retumbante sucesso do musical CAMELOT. O mundo não era o bastante para a paixão dessa bela atriz que vinha partindo corações desde a adolescência com seus olhos de cor única e seu talento cristalino como água. Nos anos sessenta, não se enganem, não foram Jack e Jackie Kennedy. Não. A chama brilhava em outra parte. O que alguns viviam em alcovas, os dois alardeavam. Alarde que se propagou até os anos setenta.

Fellini tinha criado o termo “paparazzo”, que significa “inseto zumbidor”, e tornado a figura do fotógrafo caçador das intimidades dos famosos algo popular no seu clássico “LA DOLCE VITA”. Essa figurinha, que fica caçando BBBs no Leblon, não existia dessa forma. Foi um marco na representação do consumo da “celebridade”. Para esses fornecedores e seus consumidores, não interessava o que eles faziam na tela, e sim na cama (hoje a coisa até se aprimorou: eles não precisam nem ser artistas, nem coisa nenhuma). Liz e Dick eram um prato cheio. Sexo e quebra pau, jato particular de dez lugares, mansões e propriedades pelo mundo, negócios em todo o planeta, pinturas de Monet, Picasso, Van Gogh, Renoir, Pissarro, Degas, e Rembrandt na parede, um par de Rolls-Royces (o dele prateado e o dela verde), cenas tórridas e declarações românticas (ou não) que nenhum roteirista conceberia. Tudo contrabalaçado pelo indecente prazer da vida simples e sem luxos de Puerto Vallarta, no México. Os atores viviam, no mundo real, o que todos sentados no cinema ansiavam: um romance genuíno, sem amarras e capaz de sacudir o planeta.

E não foi apenas a Terra que sacudiu. Os locais da passagem do furacão-dupla também. Num exemplo, as suites dos hoteis ocupados pelos dois tinham que ter os andares acima e abaixo totalmente pagos e esvaziados para que as brigas e as pazes não incomodassem os outros hóspedes. Onde existe tamanha elegância nas celebridades de hoje? E não estou falando das “boazinhas”.



Elizabeth era a que mais se divertia com as brigas: “Richard perde a calma com um prazer genuíno. É lindo de se ver. Nossas brigas são deliciosas contendas de gritos. E ele é como uma pequena bomba atômica explodindo.”

Ah! O amor!

E jóias! Liz se tornou o graal de um ladrão de classe. Possuí-las parecia uma tentativa dela de obter rivais para os seus olhos. Inútil. As pedras ficavam humilhadas. O apaixonado Burton a presenteou com o diamante Krupp de 33.19 quilates (com o valor corrigido para hoje, dois milhões de dólares). À ele se seguiu o Diamante Cartier. Valor: um milhão de dólares. Modesto. Dick o disputou com Onassis. Após a vitória, orgulhoso declarou: “Queria muito a pedra mais incomparavelmente encantadora para a mulher mais incomparavelmente encantadora. Não podia permitir o desperdício dela ir parar nas mãos de uma Jackie Kennedy ou Sophia Loren. Ia ter um surto!” Desse ponto, então, a rocha passou a ser chamada de “The Taylor-Burton diamond”. Bonito não? Mas o ator também usava sua vasta imaginação para talhar os insultos mais apurados. Seu apelido para Liz era “Twmpyn”, palavra galesa que significa “caroço grande”. Chorem românticos!

Esse casamento não podia durar. Filho de alcoólatra, Dick podia acabar com duas garrafas de vodka em um dia. Liz tentava não ficar atrás. Resultado: um casal com severo problema com álcool. Não podia durar.

O divórcio se deu em 1974. Sintomáticamente, no dia da independência americana. Um quatro de julho cheio de fogos. “Você não pode ficar jogando barras de dinamite o tempo todo em cima do outro sem esperar que alguma exploda um dia!”, declarou o ator na ocasião. Liz levou as obras de arte, a mansão mexicana… e as jóias. Em 1975, lá estavam prontos para “recasar”. Burton declarou (fingiu? Que atuação!) estar com um câncer e deixou “vazar” cartas de amor para ela. Batata! O novo casamento ocorreu em Botswana, em outubro (bom mês). Ele jurou parar de beber. E se esforçou muito. Tudo bom. Tudo bem

Quatro meses depois estavam separados novamente.

Liz casou-se com um senador (por seis anos. Sua união mais calma), e se livrou da bebida e das pílulas. Burton, por sua vez, largou a garrafa graças ao apoio (e eventual casamento) fornecido pela modelo Susan Hut.

A saúde do ator estava seriamente comprometida. Liz se casava com a velocidade da escolha de vestidos. Mas o mundo olhava tentando entender como evidentes apaixonados não ficavam juntos. Pobre da pretensão do mundo em tentar entender a paixão.

Além de CLEOPATRA, outras reuniões na tela (trabalharam juntos em onze filmes) oscilavam entre algumas bobagens, algumas decepções (existiria algo mais óbvio do que esse casal explosivo interpretar A MEGERA DOMADA? Mas o filme, infelizmente, ficou abaixo do que poderia ser) e pérolas definitivas, como QUEM TEM MEDO DE VIRGINA WOOLF? Perfeitos. O casal destroçado de Albee caía como uma luva para os dois. Ambos foram indicados para o Oscar. Liz ganhou. Mais um para a sua coleção. O fato de nunca ter sido reverenciado com o prêmio mortificou Richard até o fim. Se auto-intitulava “o ator que mais teve indicaçoes da Academia para não ganhar nenhuma”. Atuar, para os dois, não era uma brincadeira. Muito pelo contrário. Burton costumava se menosprezar se denominando um “manqué” (fracasso no desejar). “Sou um “manqué” em tudo. Um ator manqué, um filósofo manqué, um escritor manqué, e, por consequência, um tédio insuportável.”

(Comentário aparte, mas irresistível: na década de oitenta, o SATURDAY NIGHT LIVE criou um dos seus sketchs mais hilários, trocando os casais da peça e substituindo o casal jovem pelo Principe Charles e a Princesa Diana e o casal agressivo… por Ronald e Nancy Reagan . Impagável!)

Burton escreveu centenas de diários (e muitas cartas dedicadas à Liz). Neles se destaca que a sua principal frustração era não ser escritor. Sobre seu caixão desceu uma cópia do livro de poemas do seu amigo querido, Dylan Thomas (outro contumaz beberrão). Atuar, escrever e amar Elizabeth eram suas paixões.

“Por alguma razão, o mundo parece se divertir conosco! Dois maníacos! Costumo dizer que nós somos o ‘Le Scandale!’ ”

Dick não constatava isso por afetação. Apenas constatava. O último encontro do casal nos palcos se deu no início dos anos oitenta, na encenação de VIDAS PRIVADAS, de Noël Coward. Nenhuma surpresa, uma peça sobre um casal de divorciados. Talvez por esse excesso auto-referente, o público foi condescendente, mas a crítica massacrou o espetáculo. Os tempos já eram outros. Nada mais de CLEOPATRAS. Nomes como Scorsese, Coppola, Cassavetes estavam inventando uma outra Hollywood. O par se descobriu uma súbita relíquia. Nada mais de estrelas no céu e nas telas. Pé no chão. Crepúsculo.

Em cinco de agosto de 1984, na sua residência em Célig, Suiça, Richard Burton sofreu um derrame fatal enquanto dormia. Estava com 58 anos. Quando soube da notícia o surto histérico de Liz foi tão grande que o advogado mexicano que estava na porta giratória de casamentos terminou o noivado ali mesmo e foi para casa. No memorial londrino, a atriz sentou na primeira fila da igreja. A esposa de Burton na época, Sally Hay, arranjou legalmente para que ¨apenas¨ ela, Sally, fosse enterrada ao lado do marido.

Restaram as cartas e os diários. Após voltar de Londres, dois dias depois da morte de Burton, Elizabeth recebeu sua última carta, escrita dois dias antes do falecimento, numa estranha simetria. A manteve escondida por anos, numa gaveta de cabeceira ao lado da sua cama. E aí de qualquer marido que sequer tentasse tocar o envelope. Um dia decidiu, enfim, revelar seu conteúdo. Sem largar o papel, apertado com força, ela leu as palavras que diziam que Richard não se sentia infeliz, mas sabia que tinha sido mais feliz com ela. Afirmava que ninguém jamais poderia compreender o que a união deles tinha sido. Que se pegava, as vezes, refletindo se seria possível existir uma outra chance para eles. Seria possível?

Num contraponto típico do seu humor, Burton, em um dos seus fiéis diários, havia antes registrado um comentário antecipando a sua própria morte… e, para variar, sobre Liz:

“A piada é que eu vou morrer por causa da bebida e ela vai continuar radiante, carregando essa metade do mundo que conquistou por merecimento!”

Sim. Havia um indisfarçável orgulho.

O escândalo não era uma exclusividade deles. Sexo, drogas e rock and roll já serviam de bandeira para a época e quartos de hotel eram destruídos em meio a orgias e bandas pop, estrelas de cinema, monstros como Mason, e excessos que duram até hoje (cada vez mais twittados e patéticos na sua desesperada artificialidade). Então qual a questão aqui?

Richard Burton e Elizabeth Taylor.

Porque o séc.XX testemunhou uma lista de casais inesquecíveis. Frida Kahlo e Diego Rivera, Sinatra e Ava, Marilyn e DiMaggio, Bogie e Bacall, Boris Pasternak e Olga Ivinskaya, John e Yoko, Grace Kelly e o Príncipe Rainier III, Clark Kent e Lois Lane…



Mas nada foi tão irresistívelmente elegante, desnudado, extravasado e irradiado quanto essa “dupla de maníacos”.




Pois que se tenha então aqui, na semana da morte da mulher amada, a lembrança da voz barítona de Richard Burton com a última palavra. Que soe, primeiro em seu galês natal e depois na tradução, a frase que, mesmo separado, ele sempre dedicou à ela:

“ ‘Rwyn dy garu di’n fwy na’r byd ei hunan’ “

“ Eu te amo mais que o próprio mundo!”